Em algum lugar da Argélia, anos antes de 1930, um adolescente deixou sua marca no gol. Anos depois, essa experiência na posição de goleiro o faria escrever algo sobre tudo aquilo que aprendeu na vida. Sua grande lição foi simples: “a bola nunca vem para a gente de onde se espera”. Esta poderia ser apenas mais uma frase sobre o gigantesco universo dos goalkeepers, aqueles jogadores que se vestem de maneira diferente e que têm como função primordial proteger a meta, o gol. Daí a expressão guarda-metas. Os goleiros guardam muito mais do que isso; eles acumulam histórias incríveis, nomes estranhos, camisas excêntricas, jogos épicos e certa perplexidade. E também solidão. Todo goleiro é um solitário em sua camisa 1. Ele é o único que vê o jogo de onde ninguém vê. Menino na Argélia, estudante na França, Albert Camus, escritor, pensador e Prêmio Nobel da Literatura em 1957, foi goleiro. E nunca jogou uma Copa do Mundo. O escritor atacava no gol para não gastar os sapatos e, assim, não apanhar de sua avó. Nem sempre ele foi um niilista, acredite.
No ano de 1930 o Uruguai sediava a primeira Copa do Mundo, o Campeonato Mundial de Futebol. A razão dessa escolha é relativamente simples: a Celeste era multicampeã e estava com toda moral no cenário mundial. Afinal, havia ganhado as medalhas de ouro no futebol nas Olimpíadas de 1924 e 1928. Era a equipe a ser batida. Construiu um estádio – o Centenário – para receber a competição. Teve pouca ou nenhuma oposição dos times europeus presentes na América do Sul. O Brasil, todo bagunçado, veio pela metade e também não ofereceu resistência. A briga política entre as federações de Rio e São Paulo (comuns na época) deixaram no Brasil seu maior craque: Arthur Friedenreich. Alguém que deixa seu melhor jogador em casa, realmente não quer gastar os sapatos. A Seleção Uruguaia sagrou-se campeã vencendo, com duas bolas diferentes na partida final, a Argentina por 4 a 2. Sim, coisas de antigamente: brigaram por qual bola seria usada; dividiram em dois tempos; duas bolas de couro (legítimo), cada uma vinda de um lado do Rio da Prata. O melhor goleiro da Copa foi o arqueiro uruguaio Ballestero.
No gol brasileiro tivemos a presença de Joel e Velloso. Eles não eram considerados os melhores goleiros em atividade no país, posto cuja assunção coube a Nestor, jogador do Paulistano, alguma coisa como o São Paulo de antigamente. Nestor não foi para a Copa no Uruguai pelo mesmo motivo de Friedenreich e, azar, quase perdeu a perna numa dividida com o atacante Osses do Palestra Itália, um ano depois. Esfarelou o joelho e teve que abandonar o futebol de forma prematura.
Em seu Goleiros: heróis e anti-heróis da camisa 1, Paulo Guilherme nos conta que Joel, de família nobre (eu não sei o que quer dizer “nobre” em plena República do Café mas deve ser alguém que não precisava trabalhar), recusava-se (olha aí) a defender a cobrança de pênalti quando o jogador besuntava a bola com cuspe, um hábito comum naquele tempo e ainda vivo nas quadras de handebol. O goleiro do Brasil poderia ter sido Amado, e aqui inauguramos a galeria dos nomes estranhos de goleiros. Amado era amado no Flamengo e no gol da Seleção Brasileira, um ano antes da Copa do Uruguai. Considerado instável debaixo das traves, caiu com a Bolsa de Nova York em 1929. Todos esses goleiros eram verdadeiros fantasiados. Se você encontrasse um na rua andando em pleno Centro de Porto Alegre hoje em dia, certamente diria que é o avô de alguém perdido. Boné, gola alta com gravata, bermudas abaixo do joelho e sapatos (sim, as chuteiras eram botinas), só poderia ser alguém procurando a Confeitaria Haiti.
A história contada é que Camus jogou no gol para não gastar os sapatos e, com isso, não apanhar de sua avó. Os goleiros brasileiros não gastaram botinas na Copa do Mundo de 1930. Eles voltaram cedo para casa.
Novembro de 2022
Golaço de texto!!! Ou melhor dizendo, Baita defesa!!!
Que baita lance 🙌🏽 Parabéns, Ed b
Esse texto é de quem gasta as botinas!
Texto excelente, característica do autor. Histórias contadas e muitos significados.
Parabéns pelo projeto. Iremos aproveitar muito. 😍😍😍
Maravilha de texto Edgar!
Estou ansioso pelo próximos. Abraço