A Copa do Mundo de 1970 – O miado de Félix

Em seu livro O drible, o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues utiliza como pano de fundo de seu romance um lance mágico de Pelé na Copa do Mundo do México para contar a história de um filho que tenta reestabelecer contato com o pai, famoso cronista esportivo que está à beira da morte. No filme O ano em que meus pais saíram de férias, Cao Hamburger conta a história de um menino que é deixado pelos pais, militantes que fogem da repressão política da ditadura, enquanto a Copa toma conta das ruas. Há crônicas de Nelson Rodrigues sobre o time de 70 em seu A Pátria em chuteira que são como a beleza plástica de um drible de Jairzinho. Muito se escreveu, por exemplo, sobre os gols e lances maravilhosos de Pelé, Tostão, Rivelino e Carlos Alberto. O tricampeonato mundial foi defendido por um goleiro que tinha nome de gato de história em quadrinhos e o apelido de “Papel”. Talvez por isso ele tenha voado em todas as bolas e direções, feito algumas trapalhadas (no gol sofrido na final) e entrado para a mitologia daquele time mágico. A crônica de hoje é sobre o miado de Félix e outros goleiros.

A quantidade de material jornalístico, cinematográfico e literário em torno da Copa do Mundo de 1970 e disponível para o espectador/leitor é impressionante. A popularização da transmissão pela tevê deu a este mundial o caráter moderno cujo equivalente em campo foi, sem dúvida, o esquema tático do futebol jogado pelo Brasil. A Copa do México contou com a força das grandes seleções da época: as bicampeãs Brasil, Itália e Uruguai, e as campeãs Alemanha e Inglaterra. As partidas foram emocionantes, a Seleção Brasileira deu show, muitos lances e gols são considerados antológicos e constam hoje nas galerias de melhores de todos os tempos.

No gol brasileiro, tivemos três goleiros: Ado do Corinthians Paulista, Leão do Palmeiras e Félix do Fluminense. A tradição do time carioca em fornecer goleiros para a Seleção Brasileira mantinha aqui sua escrita. Félix era herdeiro de Castilho e substituía o bicampeão Gylmar. Muitos, no entanto, entendiam que Ado era o melhor, vivia melhor fase. De qualquer forma, Ado ganhou projeção com a Copa e virou o primeiro goleiro-propaganda do futebol brasileiro, um pouco por sua beleza de colocar ginásios de ponta cabeça, outra porque era bom de papo. A proximidade entre futebol e publicidade já era uma realidade nessa época. Quem não lembra do famigerado “você precisa levar vantagem” que criou a “Lei de Gerson”? O terceiro goleiro, Leão, ainda era um gatinho, tinha apenas 21 anos; seria, no entanto, o titular nas duas Copas seguintes, e ainda voltaria em 1986. Em 82, faltou um felino no gol (Vadir Peres é um capítulo à parte na história dos goleiros brasileiros em Copas). Desse modo, Félix era considerado por João Saldanha um goleiro inferior, que não jogava de luvas e por isso foi excluído. Após o desentendimento de Saldanha com o presidente Médici, o bicampeão mundial Zagallo foi chamado para comandar a Seleção e trouxe o goleiro do Fluminense de volta (sem luvas mesmo). Então, nem Ado, nem Leão. Quem soltou seus miados, pulos e peripécias no México foi Félix Miélli Venerando, ou simplesmente Félix. “Papel” ganhou peso, massa e agilidade a partir de modelo de treinamento copiado do Estrela Vermelha da Iugoslávia pela comissão técnica brasileira. O time era da ditadura brasileira – João Saldanha, comunista, foi cortado – , mas a técnica de treino dos goleiros foi soviética.

Há muitas histórias sobre goleiros no México. Todas elas passam pelos pés, pela cabeça e pela genialidade de Pelé. Um desses lances aconteceu um ano antes da Copa: o celebrado Gol 1000. Diante de um Maracanã lotado para Vasco x Santos, Pelé entrou em campo com 999 gols anotados. Penalidade máxima. Lá vai ele cobrar. Na meta do Vasco, estava o argentino Edgardo Andrada, e ele não estava com vontade de deixar a bola entrar. Anos depois o arqueiro revelaria que aquele foi o ponto alto de sua carreira. Na Copa, o checo Viktor quase tomou um gol do meio da rua após um chute de Pelé. Em outra partida, o goleiro da Inglaterra Gordon Banks fez a defesa mais difícil de sua vida após uma cabeceada do craque brasileiro, defesa considerada uma das mais impressionantes em Copas do Mundo. O lance que consagraria o Rei Pelé, contudo, foi o drible que ele deu no goleiro uruguaio Ladislao Mazurkiewicz, numa jogada em que o comportamento esperado do atacante foi, numa fração de segundo, modificado, resultando num verdadeiro balé diante das câmeras. O uruguaio ficou de joelhos olhando Pelé dar a volta pelo lado oposto e… quase gol. Um dos lances mais geniais do futebol de todos os tempos, no fim, não foi um gol.

O miado do gato Félix produziu cenas únicas no mundial, e, usando as palavras do poeta mexicano Octávio Paz, foi “capaz de produzir maravilhas, capaz de produzir horrores”. Ganhou a Copa jogando a última partida com luvas só para calar a crítica esportiva. Gato é gato.

Novembro de 2022

1 comentário em “A Copa do Mundo de 1970 – O miado de Félix”

Gostou? Não? Comente!

Rolar para cima