A Copa do Mundo de 2018 – A geometria iridescente de Neuer

Os primeiros anos do século XXI produziram goleiros tecnicamente impressionantes. Também foi um tempo de arqueiros com nomes estranhos para os ouvidos brasileiros (Bravo, Justo, Lerda, De Amores, Defendi, Milagres, Notário Seliga, Tome e Valido e… Porras). Nada disso se aplica a Manuel Neuer (novo em alemão). Esse foi um dos guarda-metas mais espetaculares em atividade na última década, feito que será equiparado aos seus dois grandes antecessores imediatos, Gianluigi Buffon e Iker Casillas. O reinado de Neuer é a geometria de sua atuação, sua postura como defensor das minorias, líder em campo e um atleta perfeitamente adequado à posição moderna do goleiro, que é saber jogar com os pés. Neuer é um verdadeiro líbero, e muitas vezes até ensaiou fazer gol na área adversária. Recentemente, o goleiro Alisson Becker fez um lindo gol de cabeça, um gol iluminado, que ofereceu ao pai, falecido meses antes. Neuer é antes e depois dele, porque simplesmente ele junta as características de um atleta de alto nível e um ativista político. Jamais será um nulo, em campo ou fora dele.

A Copa do Mundo da Rússia foi vendida naquele pacote, já mencionado aqui, no qual também foi eleito o Qatar para a Copa seguinte. Depois daquele “combo” de duas Copas, a escolha de Estados Unidos, Canadá e México para 2026 acalmou os ânimos daqueles que se sentiram prejudicados quando os dois países autocratas e autoritários, nações que não respeitam os direitos humanos, com perseguições à comunidade LGBTI e políticas na Rússia, restrições religiosas e controle da população, além de restrições a manifestações de gênero no Qatar. No campo, venceu a França em final inédita. Para se ter uma ideia, das 22 edições da Copa do Mundo, sabemos hoje, véspera da final, em apenas três vezes uma final se repetiu: entre Alemanha e Argentina (três finais) e Brasil e Itália (duas disputas de título). O melhor goleiro da Copa do Mundo de 2018 foi o belga Thibaut Courtois, jogador da chamada “geração belga”, que não chegou a lugar nenhum, mas que eliminou o Brasil nas quartas-de-final. Aliás, o Brasil gosta de ser eliminado nessa fase torneio, espécie de “banho frio”, ou seja, uma fase que nos deixa no meio do caminho. Das 22 participações, o Brasil caiu sete vezes nas quartas (o mesmo número de finais, okay?) e somente quatro nas fases anterior. Quanto a Courtois, ele é atualmente considerado o melhor goleiro do mundo, em eleição feita em outubro de 2022.

O Brasil levou para a Copa da Rússia uma nova geração de goleiros. Estivem no país eslavo o titular Alisson (Roma-ITA) e os reservas Ederson (Manchester City-ING) e Neto (Valencia-ESP). Neto desapareceu após 2018, assim como Victor e Jefferson, após a Copa do Brasil. Os goleiros brasileiros convocados passaram a ser todos atletas que jogavam em times europeus (acredite você ou não, mas até o inexpressivo Doni, convocado por Dunga em 2010, jogava na Roma). Alisson, ex-goleiro do meu Sport Club Internacional, seguiu a tradição iniciada por Taffarel e Dida, dois gigantes que brilharam nos gramados da Europa. Reserva imediato de Alisson em duas Copas, Ederson é, até hoje, considerado por muitos analistas como tecnicamente superior ao titular do Brasil. Alisson, contudo, conseguiu a façanha inédita para um goleiro brasileiro: ele foi eleito o melhor goleiro em atividade no mundo no ano de 2019, em eleição feita pela renomada Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol (IFFHS)

Apesar de Courtois ter sido eleito o melhor goleiro da Copa, o reinado de Manuel Neuer continuaria. A qualidade iridescente de Manuel Neur, “cujas cores são as do arco-íris ou que reflete essas cores”, é realmente a de ser um cidadão que luta pela sua forma de expressão. Sua extensa participação nas Copas de 2010, 2014, 2018 e 2022, seus títulos pelo Bayern de Munique, no Campeonato Alemão e Liga dos Campeões, e o fato de ter sido eleito pela IFFHS por cinco vezes o melhor goleiro em atividade no mundo (2013-2016 e 2020) colocam Neuer, o Novo, como um dos goleiros da história do futebol. Sua postura como capitão da Alemanha, e o fato de o time ter produzido a imagem da Copa do Mundo do Qatar (na hora da foto oficial, todos jogadores alemães colocaram a mão e fecharam a boca), serviu para mostrar que os jogadores podem agir politicamente. A Democracia Corinthiana, aqui nos anos 1980, e o abraço às Mães da Plaza de Maio dado pelos jogadores da Argentina antes de viajar para o Qatar, mostram que o futebol não é nulo, nem neutro. “Não sou nada, não quero ser nada. Afora isso tenho em mim todas as coisas” (Fernando Pessoa). Ou cores. Neuer nos diz isso em suas posturas políticas, defesas incandescentes, habilidade com pés e liderança em campo. E o fato de jogar, inclusive, com o uniforme totalmente branco. Neuer reinou entre as Copas de 2010 e 2018. Esteve na Copa de 2022, foi eliminado, tirou férias e quebrou o pé esquiando numa colina de neve. Afastou-se como soberano. Pelo menos por alguns meses.

Impossível não registrar, na penúltima crônica desta série, que o goleiro eleito com o nome mais impressionante é Nullo, o primeiro guarda-metas do Palestra Itália, em 1921. Novo ou nulo, o goleiro não quer ser um invisível, e busca a todo preço mostrar seu valor. O goleiro Barbosa que o diga.

 Dezembro de 2022

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