A Copa do Mundo de 2006 – Os retângulos de Dida

O desenvolvimento do futebol levou os goleiros a modificarem muito sua forma de atuar. Se nos primórdios do futebol eles nem existiam (a posição foi criada onze anos depois), hoje eles são um espetáculo a parte no esporte bretão. O ludopédio, também chamado “jogo dos pés”, reservou, para o goleiro, uma estranha evolução, sempre com a missão de impedir o gol. Se no século XIX os goleiros pesavam mais de cem quilos, na Copa de 2006 a Seleção Brasileira levou para a Alemanha o goleiro Dida, atleta com um metro e noventa e três, porte esguio, negro e canhoto. Em relação à forma de jogar e ao protagonismo dos goleiros, podemos dizer que em 1930 eles ficavam debaixo das traves, usavam boné, joelheiras e longas roupas de cores fechadas (até gravata eles portavam). Já nas edições da Copa do Mundo da passagem do século, goleiros como paraguaio José Chilavert e o brasileiro Rogério Ceni adoravam sair da área para bater falta. Sobre o uniforme, temos as estampas coloridas dos anos 1990, que ganham força na década seguinte, quando Jorge Campos inaugura os uniformes escandalosos – o mexicano fez escola. Dida, o goleiro brasileiro, gostava de sair debaixo das traves, usava roupas escuras ou fechadas, e jamais saía do seu quadradinho, ou seja, nunca saída do gol. No retângulo de todo goleiro, ele fechava a meta.

O Brasil chegou ao Mundial da Alemanha com uma das melhores seleções de todos os tempos. No papel, era muito próxima dos selecionados de 1970, 1982 e 2002. Além da elegância de Dida no gol, a escrete contava com os laterais Cafu e Roberto Carlos, zagueiros Juan e Lúcio, meio campistas com a segurança de Gilberto Silva e Juninho Pernambucano, além, é claro, do badalado “Quadrado Mágico”, composto pelo Kaká, Robinho, Ronaldinho Gaúcho e Ronaldo Nazário. Numa Copa em que os favoritos eram Alemanha e Brasil, sobrou para Itália e França protagonizarem a final. No caso brasileiro, um gol do francês Henry tirou o sonho do hexa. Já a Alemanha, perdeu a semifinal para os italianos com dois gols na prorrogação, sem chances para o goleiro Jens Lehmann, sendo o primeiro deles um passe mágico do meio-campista italiano Pirlo. A final da Copa proporcionou o duelo entre o craque da Copa de 1998, Zinedine Zidane, agora em sua última participação, e o melhor goleiro do mundo da década, o italiano Gianluigi Buffon. O jogo ficou empatado até o final e foi decidido, pela segunda vez na história do torneio, em cobranças de penalidades máximas. Deu Itália, tetra. Zidane converteu um pênalti durante o jogo, mas não ficou até o final; ele foi expulso depois de uma cabeceada no peito do defensor italiano.

A titularidade de Dida era incontestável em 2006. Apesar de o Brasil levar para a Alemanha Rogério Ceni e Júlio César (o titular em 2010/14), o fato é que Dida era um monstro no gol do Milan, time italiano que o projetou ao mundo, após a carreira de campeão pelo Esporte Clube Cruzeiro. Dida tem um currículo invejável e, na minha opinião, o melhor goleiro que vi jogar. Em âmbito internacional, Dida disputou 91 partidas em onze anos pela Seleção Brasileira, vencendo uma Copa América, duas Copas das Confederações, uma Copa do Mundo e ganhando uma medalha olímpica de bronze. É o primeiro goleiro brasileiro a ser nomeado para o Prêmio FIFA Ballon d’Or e o primeiro bicampeão do Mundial de Clubes da FIFA, indicado sete vezes ao prêmio de Melhor Goleiro do mundo da Federação Internacional de História e Estatísticas (IFFHS) e é um dos apenas doze jogadores que ganharam tanto a Liga dos Campeões quanto a Copa Libertadores da América. Foi eleito o melhor goleiro da América Latina do século XXI pela IFFHS, e é amplamente classificado entre os melhores goleiros brasileiros de todos os tempos, ao lado de Marcos, Rogério Ceni, Taffarel, Carlos, Emerson Leão e, lá atrás, Gylmar dos Santos Neves. Dida estaria presente nas listas dos dez melhores goleiros do mundo por longos anos.

Uma curiosidade sobre goleiros na Copa da Alemanha foi a estratégia de atuação do alemão Jens Lehmann nas cobranças de pênaltis. Frio e calculista, sóbrio em sua vestimenta e indiferente ao sucesso momentâneo da classificação, Lehmann foi perfeito em suas atuações nas partidas até a semifinal contra a Itália. Tendo brilhado na hora certa, demonstrou por que motivo foi escolhido como um dos cinco melhores goleiros do mundo em atividade na época (Dida está na lista). Na hora da decisão por pênalti comprovou isso, pois foi extremamente pragmático na hora certa. Tudo por causa daquele estranho uso da meia. Explico.

Auxiliado pela comissão técnica da seleção alemã, Lehmann fez aquilo que faltou ao Brasil no jogo em que foi eliminado pela França em 2006: pragmatismo e determinação. Enquanto o lateral-esquerdo Roberto Carlos arrumava suas meias e literalmente não via a investida do atacante francês Thierry Henry, o goleiro Jens Lehmann usou sua meia para um propósito mais prático. Durante a disputa por pênaltis contra a Argentina nas quartas-de-final, após o 1 x 1, ele se postava na goleira e retirava da meia da perna direita um pequeno papel, onde estava anotada a frequência da direção da bola em pênaltis batidos pelos jogadores argentinos escolhidos para a decisão. Com esse expediente, Lehmann acertou e pulou para o canto certo nas quatro cobranças argentinas, tendo defendido duas penalidades, sendo a última delas (a decisiva), plasticamente perfeita: corpo esticado e mãos levantadas acima da altura da cabeça. Eis ali, amigos, a beleza do futebol e o ponto máximo para um goleiro: o pênalti defendido, a classificação garantida. Ali o exemplo mais puro do “Pragmatismo do Goleiro diante do Pênalti”, numa analogia invertida do temor presente, por exemplo, no filme “O Medo do Goleiro Diante do Pênalti”, do cineasta alemão Win Wenders, adaptação do romance de seu compatriota Peter Handke.

Dida e Lehmann. Barthez e Abbondonzieri. Neuer e Buffon. Eis os grandes goleiros dos anos  seguintes. Lendas do futebol, homens bem colocados dentro de seu retângulo mágico: a goleira. Quanto à Lehmann, em 2021 ele foi demitido da direção do Hertha Berlin após uma mensagem racista a um ex-jogador e comentarista negro. Isso ele não tirou das meias.

 Dezembro de 2022

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