A Copa do Mundo de 2010 – Iker e o beijo

As expressões guarda-redes e guarda-meta, utilizadas em Portugal, têm muito mais a ver com a posição que o arqueiro ocupa do que com a palavra goleiro propriamente dita. Se arqueiro vem de arco e goleiro vem de gol, a confusão resulta do fato de que a palavra gol tanto se aplica à goleira (esta, sim, a palavra mais adequada) quanto é utilizada para falar do gol, no sentido do ato de anotar um tento, ou seja, a marcação do gol propriamente dito. E ainda que o sufixo -eira dê a ideia de alguém que está num lugar, o goleiro está ali para guardar, para impedir o gol. O goleiro sempre é o desmancha-prazer, mas pode ser o show (nem que seja de malandragem). Os meus amigos do futebol não gostam do soturno, outro significado para quem guarda (o guarda-soturno, o vigia), mas isto já é outra história. De todas as expressões que designam o goalkeeper, ou quíper (a primeira forma como o goleiro foi chamado aqui no Brasil, quando o futebol era todo nomeado em expressões inglesas como corner, off side, score, scretch etc.), talvez a mais estranha de todas seja a expressão guarda-vala. Está registrada no Dicionário Contemporânea de Caldas Aulete, cuja elaboração inicial, sabe-se, começou ainda no século XIX pelas mãos do grande dicionarista português. E o que isso tudo tem a ver com a Copa do Mundo de 2010? O fato de um goleiro ter defendido sua vala de uma forma toda especial: ele trapaceou com o juiz. Esse goleiro foi Manuel Neuer, a muralha alemã, cuja participação foi decisiva num determinado jogo. Ele é um dos goleiros e personagens daquele Mundial.

A Copa do Mundo da África do Sul foi a primeira disputada naquele continente. Sua indicação em eleição feita pela Fifa foi rodeada de indícios de compra de votos e corrupção, e abriu o caminho para os processos também suspeitos de escolha das últimas três sedes (Brasil, Rússia e Qatar). De qualquer modo, foi uma Copa colorida, onde deram um nome bacana para a bola (jabulandi) e um instrumento utilizado pela torcida que virou febre (vuvuzela). Sobre regras e tecnologias do esporte, a disputa daquele ano não trouxe nenhuma novidade. Havia, contudo, uma forma revolucionária de jogar futebol, baseado na posse de bola, naquilo que ficou conhecido como o tic-tac da seleção espanhola, comandada então pelo técnico Vicente Del Bosque. A Espanha superou a Holanda na final e sagrou-se campeã pela primeira vez, depois de anos e anos ser tida como uma promessa (já era chamada de La Furia em 1950 aqui no Brasil). Em seu elenco, a Espanha apresentou ao mundo craques como Iniesta, Fàbregas e Xavi, entre outros que durante aqueles anos estariam entre os melhores do mundo. Iker Casillas estava nesse elenco campeão, foi eleito o melhor goleiro da Copa, ergueu a taça como capitão (fato registrado em 34 e 82) e tem em seu currículo, além do inédito bicampeonato da Eurocopa consecutivo, o título de melhor goleiro do mundo entre 2008 e 2012, ou seja, eleito cinco vezes seguidas o melhor do mundo pela Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol (IFFHS).

O Brasil levou para a Copa da África o goleiro Júlio César, reserva em 2006 e agora titular absoluto. Estava em sua melhor forma, e durante os anos 2010 ele figuraria nas listas dos dez melhores goleiros do mundo, fato alcançado apenas por Dida e, depois, por Alisson. Seus reservas foram Gomes e Doni, atletas que participaram de jogos preparatórios e que assumiram a titularidade apenas em amistosos e torneios menores. No caso de Doni, ninguém realmente entendeu por que motivo o ex-arqueiro do Juventude estava na Copa. Coisas do técnico Dunga, sempre considerado um cabeça-dura (é bom lembrar que ele não convocou Paulo Henrique Ganso). A participação de Júlio Cesar na edição de 2010 seria tão trágica quanto a de 2014, tendo sido prejudicado em 2010 pelo volante Felipe Melo, no gol da vitória da Holanda nas quartas-de-finais, quando o Brasil foi eliminado. Felipe Melo nunca escondeu seu lado troglodita e, além de atrapalhar a saída do Júlio César, fez o gol contra, acabou expulso, prejudicando a reação brasileira ante o time dos Países Baixos. Brasil fora.

Três histórias curiosas sobre goleiros na Copa da África. Primeiro, a malandragem. No jogo entre Alemanha e Inglaterra pelas oitavas, após um chute de longa distância que pegaria o goleiro Neuer adiantado, o guarda-metas alemão simplesmente esperou a bola quicar, agarrou com as mãos e saiu jogando, o juiz não viu e a Inglaterra foi roubada. Vingança da final de 1966. Nas quartas de final, Uruguai e Gana. O jogo estava 1 a 1 na prorrogação. Confusão na área, Gana vence o goleiro Muslera, a bola vai entrar, e o atacante Luis Soares voa e defende com a mão. Pênalti batido e Gana não marca, o jogo vai para os pênaltis, Uruguai passa. A última história envolve o amor. Iker Casillas, o melhor goleiro em atividade então, está em estado de graça também com a jornalista espanhola Sara Carbonera. Numa entrevista exibida ao vivo pela televisão, o capitão da seleção espanhola simplesmente dá um beijo nela. Depois os dois casaram, ele tornou-se multicampeão pela seleção e Real Madri. Os dois tiveram um final feliz. Um goleiro atacante (hoje seria assédio).

Em uma Copa do Mundo trágica para alguns (Muslera, Júlio César) e brilhante para outros (Neuer, Casillas), os goleiros saíram da África do Sul com um alto nível técnico, iniciado em fins dos anos 1990, padrão que se repetiria nas edições seguintes do Campeonato Mundial. Ninguem, contudo, conseguiria defender sua vala de forma tão esperta como o goleiro alemão. Neuer utilizou-se de conhecidos artifícios, utilizados tantas vezes pelos jogadores, como na vergonhosa decisão de 1966, em que a Inglaterra roubou um gol da Alemanha, ou, ainda, como em 1962, quando o brasileiro Djalma Santos fez uma falta dentro da área e, na maior cara-de-pau, deu dois passos para fora. Neuer quer dizer novo. Sua malandragem, no entanto, é bem velhinha. Nada comparado ao que fez Casillas. Em campo, okey?

 Dezembro de 2022

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