A Copa do Mundo de 1938 – Kafka em Batatais

O escritor tcheco Franz Kafka nunca esteve em Batatais, cidade do interior de São Paulo; tampouco assistiu sequer a uma partida de futebol em Copa do Mundo. Em 1924, deixava ao mundo seus escritos com a ordem de serem queimados. O amigo Max Brod não atendeu ao pedido e, assim, tivemos acesso à atmosfera de pesadelo de seus personagens, sua consciência de inadequação, a perda crescente do sentido da realidade, o pressentimento generalizado da desagregação, o isolamento do indivíduo e a busca do equilíbrio pela naturalização do insólito, tudo parte da literatura sufocante do autor. Kafka, Batatais… o que tudo isso tem a ver com os goleiros? Tudo, e nada. O personagem de hoje é Algisto Lorenzato, goleiro que jogou no Fluminense nos anos 1930, mais conhecido como Batatais, nome de sua cidade natal. Batatais é o primeiro protagonista das traves que vestiu a camisa 1 da Seleção Brasileira e representa a luta de muitos para sobreviver no mundo. Diferente dos dois primeiros goleiros das Copas anteriores, provenientes de famílias ricas, Batatais deu duro no trabalho braçal antes de chegar ao gol do Brasil. Primeiro, o Mundial.

A Copa do Mundo de 1938 foi disputada na França, a segunda na Europa e só com árbitros daquele continente, o que explica muita coisa nos resultados, principalmente a semifinal Brasil x Itália. Sagrou-se bicampeã a seleção italiana, vencendo a Tchecoslováquia de Kafka pelo placar de 4 a 2. Na Copa da França, o contexto político de 1934 havia caminhando de forma vertiginosa para o extremismo: fascismo na Itália, a Alemanha nazista anexando a Áustria (e seus jogadores) e, na Espanha, o ditador Franco já havia produzido o primeiro horror conhecido em solo basco: o chamado Bombardeio de Guernica aconteceu em 1937 na cidade de Biscaia, País Basco e marcou a humanidade. Reproduzido por Pablo Picasso em enorme tela, hoje no Museu Reina Sofia, em Madri, a obra impactaria até mesmo o escritor tcheco. Também não é preciso dizer, como nos lembra Eduardo Galeano em seu maravilhoso Futebol ao sol e à sombra, que Benito Mussolini, o Duce italiano, advertiu os jogadores italianos, antes da partida final, que era “ganhar ou morrer”. Pelo menos do selecionado, naquele ano, ninguém morreu. Itália campeã. Para consolo de Kafka, o melhor goleiro da Copa do Mundo de 1938 foi František Plánicka, da Tchecoslováquia. O goleiro é sempre um angustiado.

Para a Copa de 38 foram convocados dois goleiros. Walter e Batatais dividiram o gol brasileiro nos cinco jogos. Batatais seria o titular. Devido à sua indisposição durante a viagem de navio de 22 dias em alto-mar, o “arqueiro das mil mãos”, como era conhecido, não resistiu ao primeiro jogo. Levou quatro gols. Sorte do Brasil que estavam em campos outros dois craques: na zaga, a segurança de Domingos da Guia (jogou machucado) e, no ataque, a lenda Leônidas da Silva, o “Diamante Negro” como era chamado. O atacante foi decisivo para a vitória brasileira sobre a Polônia, em placar final de 6 a 5 para o Brasil. Seguimos na Copa, cruzamos pelos tchecos e chegamos até a fatídica semifinal contra a Itália, ocasião em que um pênalti duvidoso foi marcado, garantindo a escrete italiana na final. Na ocasião, o técnico resolveu “descansar” o craque Leônidas da Silva. Pode?

Batatais é o primeiro exemplo de superação registrado aqui nestas crônicas esportivas. De família humilde, transformou-se rapidamente num goleiro de projeção nacional. Do Palestra Itália (Palmeiras) para o Fluminense foi um voo. Disputando a posição com outro goleiro carioca, Walter, do Flamengo, Batatais soma o longo histórico de serviço dos goleiros do Rio de Janeiro na posição de defensor das redes da Seleção Brasileira. Há, contudo, registros feitos pela crônica esportiva da época de que Batatais “amarelou” no primeiro jogo (o dos cinco gols). Já o destino de Leônidas da Silva, um negro perseguido, anos depois, pela polícia política de Getúlio Vargas, ele conseguiu dar a volta por cima e ainda conquistou cinco títulos paulistas pelo São Paulo nos anos 1940. Ele não disputaria a Copa do Mundo do Brasil em 1950.

Kafka escreveu em seus Diários (editora Todavia): “Nada além da espera, eterno desamparo”. Todo goleiro existe em meio a esta suspensão – a da vida. Foi assim com nosso goleiro Batatais em 1938. Anos depois, terminou como massagista do clube em que atuava, simplesmente por decisão preconceituosa do treinador por considerá-lo muito velho para a posição. O clube nunca pagou Batatais pelo trabalho de goleiro-massagista. A pendenga terminou num processo judicial, mais ou menos kafkaniano.

Novembro de 2022

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