Um dos melhores exemplos para se entender a condição do goleiro encontramos em Barbosa, arqueiro da Seleção no Campeonato Mundial de Futebol de 1950. Melhor goalkeeper em atividade no país entre os anos 1940/50, Moacyr Barbosa Nascimento amargou por anos a culpa que o povo brasileiro atribuiu a ele pela derrota para o Uruguai na final daquele ano. São suas as seguintes palavras: “No Brasil, a pena maior para um crime é de 30 anos de cadeia. Há 43 anos pago por um crime que não cometi”. Isso dá uma ideia do que significa ser goleiro: o sujeito pode jogar a vida inteira debaixo das traves e ser perfeito – e Barbosa continuou sendo multicampeão no Vasco da Gama depois –, mas um único erro marcou toda sua carreira. Em sua crônica “A eternidade de Barbosa”, do livro A pátria em chuteiras, o escritor Nelson Rodrigues descreve assim a posição: “O problema do arqueiro, porém, não se resume ao desgaste físico. Não. Ele sofre um constante, um ininterrupto desgaste emocional (…) Debaixo dos três-paus, parado, dá a ideia de um chupa-sangue que não faz nada, enquanto os outros se matam em campo. Ilusão! Na verdade, mesmo sem jogar, mesmo lendo gibi, o goleiro faz mais que o puro e simples esforço corporal. Ele traz consigo uma sensação de responsabilidade que, por si só, exaure qualquer um”. Para Barbosa, a angústia nunca cessou. É como se ele estivesse o tempo todo se levantando para buscar a bola no fundo das redes, após o chute de Ghiggia.
A Copa do Mundo de 1950 aconteceu depois dos longos anos de conflito armado no continente europeu, do qual os países saíram destruídos pela guerra. Por essa razão, o Brasil teve o caminho aberto para sediar sua primeira Copa do Mundo. E ainda que não tenham vindo para cá nem a bicampeã Itália e tampouco a Alemanha (vetada pela Fifa), havia o Uruguai com duas medalhas olímpicas e o título mundial de 1930, todos vencidos em confrontos com a Argentina a que muitos chamaram “decisão de times de bairros” do Rio da Prata. A final de 50 contra o Brasil ficou conhecida como Maracanazo, vencida por 2 a 1 pelos uruguaios. O Brasil só precisava de um empate, mas o clima de “amanhã seremos campeões” da véspera deixou todos confiantes demais. O resgate histórico daquele 16 de julho de 1950, contudo, nos mostra a histeria coletiva e o uso político da seleção, chegando-se ao ponto de os jogadores não conseguirem nem almoçar, comendo apenas um sanduíche com mortadela antes da partida. Quem seguraria a esquadra charrua apenas com um lanchinho? Os jornais do dia seguinte foram melancólicos. O Maracanã, um cemitério.
O Brasil levou para a Copa de 1950 dois lendários goleiros: Barbosa e Castilho, os melhores em atividade naquelas duas décadas. Os dois estariam na Copa seguinte, não fosse a lesão de Barbosa às vésperas do campeonato de 54. Isso mostra a dignidade e o lugar de Barbosa. O julgamento imposto a ele começou logo que foi encerrada a partida contra o Uruguai: imprensa e torcedores encontraram na figura do goleiro negro o culpado. Há nisso um tanto de racismo. Em seu livro O negro no futebol brasileiro, o jornalista Mário Filho (nome do Maracanã) estudou as raízes estruturais do racismo no futebol por aqui e demostrou a origem desse preconceito, desde exemplos como o pó-de-arroz que atletas negros do Fluminense colocavam no rosto para entrar em campo até clubes que barravam jogadores negros em seu plantel ainda nos anos 1950, caso do tricolor gremista no Rio Grande do Sul (fonte: Observatório da Discriminação Racial no Futebol). O julgamento a que foi submetido o goleiro brasileiro virou uma condenação pública de quatro décadas, até sua morte; poucos lembram a badalação e o uso político dos jogadores naquele ano eleitoral. A eternidade de Barbosa foi conviver com isso o resto da vida. Um pequeno curta-metragem gaúcho, Barbosa, dirigido por Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo, simulou uma tentativa de voltar no tempo e mudar o rumo daquela decisão. Ótimo filme.
Barbosa ficou preso no passado. Ali, ele espera. Seu relógio conta o tempo de forma diferente. Cada minuto, uma eternidade. Sua falha na final o perseguiu a vida toda. Como disse o jornalista João Máximo: “lembramos dele só nos momentos capitais, negativos”. Alguns mais, outros menos, os goleiros ou são esquecidos ou lembrados por curiosidades bizarras. Sam Bartman, do Charlton da Inglaterra, por exemplo, foi esquecido em campo por seus companheiros sob forte neblina no dia de Natal de 1937. Outros goleiros cultuavam a palavra Paz em seu nome (caso do reserva do Uruguai em 1950), sem falar nos goleiros com apelidos curiosos daquela época, tais como Baliza, Caliça, Cabeção, Kafunga e nosso espetacular Periquito, do Novo Hamburgo/RS, e que depois foi atuar no Sport Club Internacional. Já Luís Borracha ficou sem Copa: a competição foi suspensa nos anos 1940.
A eternidade de Barbosa só pode ser aquela de ser um dos melhores goleiros de todos os tempos.
Novembro de 2022