No estádio das Laranjeiras, cidade do Rio de Janeiro, há um busto em homenagem ao goleiro Castilho. Abaixo da imagem do ídolo, há uma placa com a seguinte inscrição: “Suar a camisa, derramar lágrimas e dar o sangue pelo Fluminense, muitos fizeram. Sacrificar um pedaço do próprio corpo por amor ao tricolor, somente um: Castilho”. Goleiro titular do Brasil na Copa do Mundo de 1954, Castilho disputou ao todo quatro Copas. Já na reserva, foi campeão nas duas últimas. O herói das Laranjeiras era considerado um dos melhores goleiros em atividade, ao lado de Barbosa e de Gylmar, o titular do bicampeonato de 1958 e 1962. Com esses três goleiros espetaculares, o Brasil inaugurava uma verdadeira galeria de defensores, estrelas, excêntricos e heróis das traves: seguiram-se Manga, Félix, Leão, Raul, Carlos, Taffarel, Marcos, Dida, entre outros, até chegarmos ao titular de 2022: Alisson Becker.
O campeonato mundial de futebol daquele ano foi disputado na Suíça, o primeiro em território europeu após a Segunda Guerra Mundial. Como sabemos, a Suíça foi poupada no conflito, afinal, além do difícil acesso topográfico, ninguém seria maluco de destruir o próprio banco, okey? O ouro e os anéis sempre ficam e até hoje o simpático e bucólico país dos Alpes tem lá guardadas contas secretas, escândalos da Fifa e, claro, uma arma na casa de cada cidadão que serviu ao exército do país. Deixemos a guerra. O Brasil jogou neste torneio aquela que foi considerada uma das partidas mais empolgantes de sua história nas Copas. A chamada “Batalha de Berna” foi vencida pelos húngaros pelo placar de 4 a 2, numa verdadeira batalha campal. Daquele jogo épico o Brasil sairia forte para a Copa seguinte, esta sim o primeiro grande acontecimento de nosso futebol mundial. O escritor, humorista e apresentador Jô Soares (1938-2022), então com 16 anos, não testemunhou aquela partida. Estudante na Suíça, ele assistiu a outros dois jogos da Seleção Brasileira, mas não viu a Batalha de Berna. Aliás, ninguém viu: a televisão, aqui, funcionava apenas na base do videotape. Cinquenta e quatro foi a Copa que ninguém viu. Apenas o Jô.
A tradição de goleiros cariocas convocados para a Seleção Brasileira já estava consolidada em 1954, Castilho ainda seria reserva em 58 e 62, de modo que, retirando as Copas de supremacia do santista Gylmar (58, 62 e 66), o Fluminense retomaria a titularidade do gol brasileiro em 1970, com Félix. Castilho começou na reserva de Barbosa em 50, e na Copa seguinte já era dono da camisa 1. Isso tudo sem falar que outro goleiro do tricolor das Laranjeiras estava na reserva imediata de Castilho na Copa da Suíça: Veludo. Completava o quadro de quípers convocados em 54, o atleta Cabeção (os apelidos eram realmente literais). Os bons goleiros presentes na Copa não impediram o Brasil de ser eliminado, afinal cruzamos como o futebol da poderosa Hungria de Puskás, franca favorita ao título. Na final, contudo, os húngaros escorregaram em campo (chovia), ao passo que os jogadores alemães, calçando chuteiras projetadas pelo fundador da Adidas, com material de travas fortes, mantiveram-se de pé e venceram a Copa. O time da Alemanha (Deutscher Fußball-Bund) sagrou-se campeão com o placar de 3 a 2 sobre os húngaros. Depois daquele ano, os alemães pegaram gosto pelas finais: são os recordistas com oito decisões, quatro títulos. O pragmatismo vencia o futebol-arte.
Em seu conto “Das memórias de uma trave de futebol em 1955”, publicado em seu livro póstumo A dama de branco, Sérgio Sant’anna cria uma narrativa em que a trave do Estádio das Laranjeiras observa o treino de Castilho. O conto faz parte da memória do escritor e torcedor do Fluminense, autor falecido de covid-19 e que nos deixou esta linda narrativa ao colocar a trave na mesma angústia kafkaniana do goleiro, aquela mesma sensação de desconforto descrita por Albert Camus ao identificar no movimento traiçoeiro da bola um grande aprendizado para o goleiro e para a vida. Castilho, Veludo e Cabeção estiveram na Copa de 1954. Os brasileiros não viram os jogos – exceto o jovem estudante Jô Soares. Na época, o rádio era a única conexão entre os jogadores e o mundo fora dos estádios (a tevê ainda era somente europeia). Castilho foi um goleiro que se considerava de sorte. Em entrevista em 1978 para a revista Manchete Esportiva, ele disse que a bola batia na trave, batia no seu corpo, seu rosto, seu queixo, mas entrar mesmo, era difícil. Sucessivas lesões com os dedos quebrados e mal curados, levaram o goleiro do Brasil a amputar o dedo mínimo da mão esquerda um ano antes da Copa de 58.
Nada capaz de tirar o lugar que Castilho ocupa no panteão dos melhores goleiros da história do futebol brasileiro.
Novembro de 2022