A Copa do Mundo de 1958 – Os porões de Gylmar

Em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo, o cronista esportivo Juca Kfouri conta uma história bastante peculiar e assustadora. Sabe-se que durante a ditadura civil-militar no Brasil, cidadãos colaboravam com os agentes repressores do Estado brasileiro e participavam ativamente das sessões de tortura nos porões da ditadura. O caso mais lembrado é do industrial dinamarquês Henning Albert Boilesen que circulava pelo DOI-CODI em São Paulo. Morreu a tiros caído ao lado de um Fusca. Há um ótimo documentário sobre ele: Cidadão Boilesen. Juca lembra o caso de Gylmar dos Santos Neves. Considerado um dos dez maiores goleiros de todos os tempos do futebol brasileiro, Gylmar foi multicampeão no Santos de Pelé (cinco Taça Brasil, duas Libertadores e dois mundiais de clube, entre outros) e titular no bicampeonato mundial de 1958/62. Há, contudo, uma mácula no currículo do cidadão Gylmar: o de ser colaborador da ditadura civil-militar, com livre circulação nos locais de tortura de presos políticos, onde era conhecido como “o despachante do DOI-CODI” (Depoimento do ex-deputado estadual Adriano Diogo). Gylmar jogou a final da Copa da Suécia com a camisa número três nas costas.

Em 1958, a Europa sediava a segunda Copa do Mundo após o conflito armado que devastou o continente. Poucos países conseguiram se reerguer tão rapidamente, e a Suécia foi escolhida. O televisionamento já era uma realidade, e a Copa foi fartamente filmada e transmitida via satélite. Estão gravados em vídeo os dribles de Garrincha, a elegância de Milton Santos, a organização de Didi, o “Príncipe Etíope”, a perspicácia de Zito, a agudeza de Vavá, os cruzamentos de Zagallo e os gols de Pelé. Claro, e as defesas de Gylmar. O mundo assistiu ao capitão Bellini erguer a taça vestido com a camisa azul. O Brasil conquistava o seu primeiro Campeonato Mundial de Futebol vencendo os donos da casa por 5 a 2 na final. Na escrita cortante de Nelson Rodrigues em suas crônicas A Pátria em chuteiras, “antes de 58 e 62, o Brasil era um vira-lata entre as nações”.  Na Copa de 1958, o time brasileiro foi uma máquina de criar belas jogadas de futebol. E gols. Jogou com a “Canarinha”, e a final com a camisa azul (os suecos tinham uniforme amarelo). O branco do belo uniforme da Seleção já havia sido abandonado após o Maracanazo de 50.

Para a Copa do Mundo de 1958, a Seleção Brasileira levou dois goleiros (apenas em 1970 os três convocados seriam finalmente a regra): o arqueiro Gylmar do Santos, titular absoluto nos seis jogos, e o goleiro reserva Castilho, do Fluminense, que assistiu a Copa do banco. No caso de Gylmar, o goleiro manteve uma carreira espetacular no futebol. Títulos se acumularam. Seu salário foi equiparado aos dos jogadores de linha (fato inédito na época). Teve reconhecimento público e mundial.  Uma história bacana sobre Gylmar: uma das imagens mais bonitas da Copa do Mundo de 1958 é ver o alto goleiro dar um colo para o garoto Pelé, então com 17 anos. Outra: quando retornou da Suécia, o selecionado brasileiro teve que fazer algumas escalas antes de chegar ao Brasil (Paris, Lisboa) e, aqui chegados, os jogadores tiveram que desfilar em carro aberto pelas ruas do Recife e do Rio de Janeiro. O goleiro Gylmar não via a hora de chegar em casa – seu filho tinha menos de um ano de vida, e ele mal conhecia o garoto. Segundo Paulo Guilherme em seu Goleiros – heróis e anti-heróis da camisa 1, Gylmar foi também o primeiro goleiro popular da história do futebol brasileiro, pioneiro em campo ao abolir o uso da joelheira e, depois de aposentado, teve revendas de carros, circulou por clubes da alta sociedade paulistana, foi observador da Seleção e administrador do Estádio Pacaembu. O livro de Guilherme, contudo, não faz menção aos porões frequentados por Gylmar, informação canalizada pela verve incisiva do texto de um dos maiores nomes da crônica esportiva hoje: Juca Kfouri (fonte/link). A notícia veio à tona agora por conta da condenação do filho de Gylmar por agressão e injúria contra judeus.

Joel (o titular em 1930) e Pedrosa (1934) vieram de famílias ricas e deixaram o futebol antes da consagração numa Copa do Mundo. Batatais (Copa da França) era um trabalhador braçal de família humilde que terminou a carreira explorado por seu clube (que não lhe pagou os direitos). No caso de Barbosa, temos o estigma em relação à figura do goleiro negro. Em Castilho, aquele que foi longe demais: amputou um dedo por seu time; morreu em depressão. Foi Gylmar o primeiro goleiro a alcançar a glória no futebol brasileiro ao ser reconhecido como um ídolo do Santos de Pelé. No campo da política, contudo, praticou atos que macularam sua imagem de ídolo.

Gylmar dos Santos Neves, imperfeito como todo ser humano, entrou para a história do futebol brasileiro como de goleiro que se destacou no cenário mundial. Quanto aos seus atos civis, caberá à História julgá-lo.

Novembro de 2022

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Placar – Gylmar dos Santos Neves era despachante do DOI-CODI

Comissão da Verdade SP

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