A Copa do Mundo de 1962 – As luvas do goleiro

O goleiro é um jogador único. Tão diferente que sua posição nem existia no início do futebol, em meados do século XIX. Como aconteciam muitos gols numa partida, os ingleses, inventores do esporte, resolveram criar a figura do defensor da meta, o guarda-meta, o guarda-redes, arqueiro, o que cuida da entrada (o porteiro), em inglês goalkeeper, quíper para nós, ou seja, o goleiro. Agora que você já tomou sua dose diária (e forçada) de dicionário, voltemos ao texto. O goleiro é único. Usava quepe, gorro ou boné nos primeiros campeonatos mundiais (as Olimpíadas, o Sulamericano), entrou nos anos 1930 (primeira Copa do Mundo) vestindo roupas longas e grossas, trajando gravatas e outras bandagens na cabeça, além das joelheiras, é claro, afinal os campos costumavam ter terra nua na pequena área. Ali onde não costuma nascer grama, fica plantado o goleiro até hoje. E tem as luvas. Projetadas para os goleiros na década de 1930, elas esperaram até os anos 1970 para se popularizarem. Caso de nosso goleiro, Félix, que na final do México resolveu não usar luvas só para mostrar que ainda conseguia defender sem elas. Ganhou a copa. Quatro anos depois, na Alemanha, o holandês Jongbloed ainda cuspia nas mãos. Na Copa do Mundo do Chile, em 1962, os goleiros ainda viviam o luto de portar roupas escuras, e o aspecto sombrio e fechado dos uniformes era a regra. Era moda. O bom goleiro era alguém sóbrio, ainda que tomasse um copo de vodca antes de atacar. Por vestir-se assim é que Yashin, o grande goleiro russo dos anos 1960 e considerado o melhor do século XX, era chamado de “Aranha Negra”.

Na Copa do Mundo de 1962, disputada no Chile, os goleiros sofreram com o terrível ataque da Seleção Brasileira. Garrincha, Vavá, Pelé (lesionado) e Amarildo fizeram o terror dos homens vestidos de preto. É o caso do goleiro da Tchecoslováquia, Viliam Schrojf: escolhido o melhor da Copa, não segurou o ataque canarinho. O Brasil sagrava-se bicampeão pelo placar final de 4 a 2. O tcheco não apagou a estrela de Gylmar (o campeão) e Yashin (a lenda). Esses três nomes colacaram todos os demais goleiros em segundo plano. Só em 1966 teríamos outro nome capaz de concorrer com eles: o inglês Gordan Banks, campeão e escolhido o melhor goleiro na Copa da Inglaterra. A propósito, um goalkeeper que gostava de camisas amarelas. Sobre as cores vivas dos uniformes de goleiros, isto seria um sacrilégio em 1962. A sisudez, o caráter franciscano e a concentração em tons escuros criaram no imaginário do torcedor a figura do goleiro sério.

Gylmar e Castilhos continuavam a ser os dois melhores goleiros em atividades no Brasil. Os grandes arqueiros dos anos 1950 já estavam aposentados, e ainda não haviam surgido os nomes que povoariam o imaginário do futebol brasileiro dos anos 1970: Manga, Raul, Ado, Félix e Leão. Todos eles usariam uniformes claros ou de cores vivas. O fato é que, para além de luvas e camisas, depois de Gylmar e Yashin os goleiros aperfeiçoaram muito sua técnica debaixo das traves. Com ou sem luvas.

Nessa passagem de um futebol amador para o profissional, e daí para o mercantil e financeiro, as tecnologias evoluíram. Os goleiros também. Lev Yashin e Gylmar dos Santos Neves deram classe e status para a posição. A capacidade técnica apurada do goleiro da União Soviética e a estrela do bicampeão mundial Gylmar guiaram, a partir dos anos 1960, todas as gerações seguintes de arqueiros. “Aranha Negra” entrou para a mitologia dos grandes goleiros, sua forma de se colocar no gol serviu de inspiração e deu nome da premiação máxima para goleiros em Copa do Mundo: o Prêmio Yashin foi concedido entre as Copas de 1994 e 2006. Já o santista Gylmar foi um dos goleiros mais vencedores do futebol mundial. Ganhou tudo.

Nem Gylmar nem Yashin ganharam esse prêmio. Os dois já estavam imortalizados em suas luvas, técnicas, defesas e personalidades fortes.

Novembro de 2022

Gostou? Não? Comente!

Rolar para cima