O goleiro é o jogador mais diferente do futebol, e já começa pelo uniforme, cujo desenvolvimento nos anos 1970 encontrou em Leão e Raul alguns dos exponentes brasileiro. A febre da fantasia alcançou João Leite, goleiro do Atlético Mineiro que sofreu o histórico gol de Falcão após tabelinha de cabeça com Escurinho, imagem que marcou aquela vitória na semifinal do Campeonato Brasileiro de 1975. João Leite usava bandagem na cabeça bem ao estilo do goleiro Nullo, do Palestra Itália (Cruzeiro), em 1921. Debaixo das traves, o guarda-redes espera o improvável, e como disse Albert Camus, ele vem de onde menos se espera. Alguns goleiros, contudo, não esperavam. Manga, do Internacional, saía do gol com sua camisa azul-bebê para interceptar cruzamentos e faltas cobradas por Nelinho, às vezes com apenas uma das mãos. Outro irreverente da posição foi Raul Plassmann, cuja personalidade forte impôs o uso da camisa amarela em pleno anos 1960 e sob os olhares assustados das famílias tradicionais de Minas Gerais. Emerson Leão, o goleiro titular nas Copas de 74/78, tinha personalidade forte. Com ele não tinha essa de entrar na área. Como cantou o Caetano: “E o leão ruge”. Nosso destino naquela Copa, contudo, foi selado na semifinal contra a poderosa Holanda, mesmo jogando de azul, a camisa mais bonita da Seleção Brasileira. Depois da branca, a mais clean de todas.
A Copa do Mundo de 1974 aconteceu na Alemanha. Aquele ano marcava o momento exato em que a Fifa se tornou uma empresa, avançou pela propaganda e publicidade, fez contratos empresariais e transformou o futebol em um negócio. E entrou sem escrúpulo na política. A escolha da sede da Copa de 78 já revelaria o amor da Fifa pelas ditaduras (Rússia, Qatar). A ótima série Esquemas da Fifa (Netflix) mostra essa passagem do amadorismo para a fase empresarial, corrupta e gananciosa da empresa Fifa, com contratos exclusivos e milionários, marcando também o nascimento de um verdadeiro Estado-Nação (tipo Vaticano, em todo lugar). Durante a Copa, dois momentos demonstram bem a gravidade do que aconteceria. Enquanto a Alemanha Oriental (DDR) vencia a Ocidental em jogo histórico com um gol fabuloso de Jürgen Sparwesser numa falha do gigante goleiro Sepp Maier, os jogadores da seleção do Zaire torciam para os adversários não fazerem mais gols, porque na África o ditador Mobutu Sese Seko implantava ordem de eles não entrariam caso perdessem de mais de três gols na última partida (conta o Brasil, exatos 3 a 0). Longe dali, no Chile, o ditador Pinochet sequestrava e torturava a mãe de Cazely, artilheiro da seleção, só porque ele se recusou a cumprimentar o general. Só ficou sabendo disso quando retornou ao seu país, após a eliminação de La Rioja. Quem conta esta história é Roberto Jardim em seu Um outro futebol – pequenas histórias da bola. O autor lembra, também, que o Estádio Nacional, em Santiago, foi palco de um dos mais sangrentos capítulos da ditadura chilena, com fuzilamentos em massa. Até hoje o estádio tem um cercado com a arquibancada original da época para que pessoal alguma esqueça disso.
O Brasil levou aqueles que seriam, a partir então, sua referência debaixo das traves: o palmeirense Emerson Leão e são-paulino Valdir Peres. Era o fim da hegemonia dos goleiros cariocas que comandaram a Seleção Brasileira de 1914 até 1970. Leão firmou-se no gol brasileiro pela sua imposição física, enorme juba e calções apertados. E, claro, suas camisas de cores fortes, moda na época. O goleiro era bicampeão brasileiro 1972/73 e considerado o melhor atleta da posição naquela década. Seu reserva imediato, no entanto, foi Renato do Flamengo, enquanto Valdir Peres, o terceiro goleiro, viria ser titular somente em 1982, mas aí já é outra história. No cenário nacional de goleiros havia ainda o goleiro-artilheiro Ubirajara, que começou no Flamengo e é responsável pelo primeiro gol com um chute de sua área, feito ocorrido no ano de 1970; no Grêmio Porto-Alegrense, atacava o uruguaio Corbo, reserva na Copa de 70; Raul Plassmann, primeiro Cruzeiro depois Flamengo era outro nome, assim como o bicampeão nacional Manga do Internacional. Seria uma deselegância não lembrar de nomes como Higino do Campo Grande e Hélio Show do Ceará.
Quando assistir ao filme oficial da Copa do Mundo da Alemanha, percebi que a participação dos goleiros é algo como se estivéssemos em alguma das narrativas fantásticas de Gabriel Garcia Marquez. Na alucinação e na extravagância dos exóticos. Aquele disparate todo em campo, bandagem, luvas, longas cabeleiras, camisa de cor chocante e defesas lindas alternadas com aberrações e falhas lamentáveis. Tal como aquela do goleiro Jongbloed da Holanda na final contra a Alemanha. Não bastasse o fato de o sujeito trajar uma camisa amarela, sustentar um número 8 às costas, apresentar-se de joelheiras (em 1974?) estranha e exoticamente ele não usava luvas. Pior: cuspia nas mãos. Hábito ridículo, tique nervoso, vai saber… Vendo aquele filme da Copa eu me perguntava: pra quê? Todos viram que ele nem se mexeu no pênalti executado pelo jogador alemão no gol de empate; então para que toda aquela extravagância de aparecer nas câmeras de tevê, invadir nossos lares cuspindo nas mãos!? Grotesco. O goleiro é sempre um desnecessário
Na Copa mais política até então, nosso goleiro rugiu. Mas não conseguiu evitar o carrossel de gols de Cruyff e seus asseclas. O baile foi total naquele 2 x 0. O Leão rugiu mas não resistiu. A rima é pobre. Uma Copa colorida de dores, corrupção e novidades.
Novembro de 2022
dessa copa em diante, eu me lembro