Em seu livro Casa de loucos, o escritor João Antônio, como todo apaixonado por futebol no Brasil, idolatra um dos seus ídolos. O cronista elege o goleiro Raul Plassmann, atleta que defendeu o Cruzeiro e depois o Flamengo, como seu personagem no texto “Raul, meu amor”. Assim descreve João Antônio seu personagem: “Quando na boca do túnel de entrada do gramado do Mineirão, surgia uma figura alta, loira, vestindo uma indefectível camisa amarela, balançando sua cabeça beatle, sua loirice de 24 anos incompletos e o charme geral de arqueiro tetracampeão da cidade, as mulheres da torcida deliravam”. Venerado pelas mulheres, agredido pela torcida masculina adversária, Raul era o jogador que mais recebia cartas das fãs. Acostumou-se com isso. Faz parte dos goleiros aceitar o destino, trágico ou não, e Raul foi um goleiro que modificou o visual radicalmente com suas camisas de cores chamativas. A ponto de o escritor de Copacabana, em sua crônica, ter chamado isso de “Poder amarelo”. Raul não foi para as Copas da Alemanha e Argentina, auge de sua carreira. Muito porque havia Leão, Leão e suas camisas verdes, as listradas, aquelas em tons azuis, azul claro, azul escuro, Leão e suas camisas com a palavra “Leão” grifada abaixo do distintivo da Sociedade Esportiva Palmeiras. Leão e Raul. Dois exóticos, dois gigantes debaixo das traves. E, claro, sempre muito bem arrumados. Era a década da vaidade.
Vamos ao Campeonato Mundial. Após o congresso da Fifa que definiu a sede da Copa do Mundo de 1978, ficou claro que a entidade máxima do futebol começou a trilhar o caminho do poder a todo custo, o apego ao dinheiro (os contratos comerciais) e o amor pelas ditaduras – vide Rússia e Qatar. O agraciamento da Argentina como sede do Mundial, dois anos antes do golpe que levou uma junta militar ao poder no país, foi usado politicamente pelos militares. A competição foi utilizada na tentativa de manter o poder, mas o resultado acabou dando efeito contrário, ainda que milhares de prisões ocorreram durante o transcorrer do torneio. Há, inclusive, um documentário argentino que mostra os militares entoando de forma repetida “solo la victoria nos interés”. Depois da Copa, os generais argentinos inventariam a Guerra das Malvinas, o que apressou a queda do regime. Videla foi a julgamento. Dentro do campo, o escândalo de um jogo comprado ficou escancarado na partida Argentina versus Peru, na qual o goleiro peruano-argentino levou seis gols. O placar era suficiente para superar o Brasil e garantir a anfitriã na final contra a Holanda. Ubaldo Fillol, arqueiro argentino, foi eleito o melhor goleiro da Copa. Atacou tudo na final, segurando o carrossel holandês de Cruyff & Cia. Argentina 3 a 1 na prorrogação.
Leão era, em 1978, um goleiro incontestável. Valdir Peres e Carlos foram convocados como reservas, mas a fase do goleiro palmeirense era realmente única, iluminada, e ninguém conseguiria tirá-lo da titularidade. Nas partidas do Brasil naquela Copa, assistimos as defesas de Leão e sua segurança debaixo das traves, além de sua liderança em campo. A personalidade forte de Leão faria dele um dos jogadores da posição com mais imposição no cenário nacional. Num tempo de grandes goleiros, de apresentações exuberantes (Corbo, Manga, Benitez) e de posicionamento corporais único (Raul, Ortiz, Fillol), Leão era uma fortaleza de reflexos, agilidade e precisão. Como toda a geração de craques da época, ficou sem o título mundial. A Copa foi ganha pela Argentina em algum salão oval da ditadura militar, um bicho extra pago, repressão nas ruas, terror mesmo. Para o torcedor brasileiro, a Copa de 78 foi roubada, e o “título moral” seria do Brasil de Leão, Nelinho, Batista, Zico e Roberto Dinamite. Para o argentino “El Pato”, como era chamado Fillol por lá, a peleja foi grande, a final em campo encharcado, o Monumental de Nuñez lotado, papel picado sobre o gramado, ali foi sua consagração definitiva. Ele jogaria depois no Brasil no Flamengo, ao lado de craques como Zico e Júnior.
Na Copa comprada a prazo, com um o goleiro argentino-peruano e seis gols, não faltou garra e nem lama dentro do gramado. Faltou Raul e os gritos da arquibancada. De todo o modo, não faltaram grandes goleiros como Zoff, Fillol, Jongbloed e Leão. Nosso personagem não foi para a Copa, mas permaneceu amado nos gramados de Belo Horizonte, nas ruas do Rio de Janeiro. As cartas recebidas não mentem.
Dezembro de 2022