Entre os aspectos peculiares e bastante comuns a goleiros, e que os diferenciam dos demais jogadores, está a da titularidade. Enquanto um jogador de linha pode assumir a posição titular de forma rápida, jogo após jogo, o goleiro muitas vezes tem que esperar um longo tempo para assumir a posição titular. O goleiro é sempre um nome de confiança (nunca entendi, afinal, os outros não são confiáveis?). Por essa razão, o goleiro, quando titular, costuma ficar longas temporadas, saindo da equipe apenas em caso de lesão ou suspensão por cartões, o que, novamente, não é tão frequente entre os defensores do gol. Nessa posição, o atleta que está na reserva (e são três: o reserva direto, o segundo reserva e o quarto goleiro, assim chamado) tem raras chances de entrar em campo, tendo menos oportunidade para provar seu valor. Carlos, o goleiro titular do Brasil da Copa do Mundo do México, purgou duas Copas na reserva até que conseguiu a titularidade da camisa 1. Os entraves – e depois as traves – fizeram dele mais um dos tantos goleiros que tiveram uma oportunidade, mas não tiveram sorte (o outro caso é Manga em 66).
A segunda Copa jogada nos estádios mexicanos aconteceu porque os problemas da Colômbia com a organização do torneio tiraram-lhe a sede, e coube então ao México a sexta competição no território latino-americano. Só para lembrar, a década de 1980 era dominada por facções guerrilheiras e terroristas na Colômbia. Em campo, foi uma Copa movimentada, cheia de reviravoltas, partidas empolgantes, eliminações dramáticas, até chegarmos à final entre Alemanha e Argentina, vencida pelo selecionado argentino, que se sagrava bicampeão. Em 1986, o mundo conhecia a genialidade (e a malandragem) de Diego Armando Maradona, autor de dois gols antológicos, sempre lembrados entre os mais impressionantes em Copas: num deles, Dieguito saiu do campo de defesa, driblou toda a equipe da Inglaterra e fez um gol de placa; no outro, venceu na impulsão o goleiro Shilton, dando um soco na bola que todo mundo viu (menos o juiz) e a pelota foi morrer no fundo das redes. Este é o chamado gol da “Mão de Deus”.
A Copa teve nomes impressionantes no gol. Michel Preud`Homme, um dos melhores dos anos 1980, o basco Andoni Zubizarreta, que defendia a Espanha (tomou um dos maiores frangos em Copa do Mundo), Walter Zenga, sentado no banco da Itália e pronto para ser o nome dos anos 1990, além de Toni Schumacher, da linhagem de grandes goleiros alemães (Maier, Khan, Neuer). Schumacher perdeu a final para a Argentina, após os golaços de Valdano e de Burruchaga. Maradona deu o serviço completo. O alemão é o autor da frase célebre sobre a concentração da Alemanha: “Aqui sobram drogas e faltam mulheres”. No ano seguinte à Copa escreveu Der anpfiff, o apito inicial, onde denunciava a drogadição imposta pela comissão técnica. Foi expulso da Alemanha e teve que jogar na Turquia. Quem contou esta história foi Eduardo Galeano em seu Futebol ao sol e à sombra. E como não podemos esquecer deles, eis a lista de nomes estranhos de goleiros (ou de goleiros estranhos) da época: Abelha (São Paulo), Borrachinha (Joinville), Cancelinha (Chaves/Portugal), Damas (Seleção de Portugal), Mora (El Salvador), Pandócio (Criciúma), Zelada (Argentina) e o temido Mão de Onça do Operário de Mato Grosso. Não era Mão de Deus, mas era bom ter cuidado com ele.
Além de Carlos, o Brasil levou Paulo Vitor e Leão. Paulo Vitor só participaria daquela Copa, não foi utilizado pelo técnico e não há muito o que registrar sobre ele; já Leão, o lendário goleiro palmeirense dos anos 1970, símbolo de força e liderança, performático e até certo ponto exibicionista no visual egocêntrico, despedia-se da Seleção naquela que foi sua quarta participação em Copa do Mundo, feito não igualado por nenhum outro goleiro (e poderia ter ido a cinco, não fosse a teimosia de Telê Santana que boicotou Leão em 82). Carlos chegou ao Campeonato Mundial do México com trinta anos, e era praticamente certo que aquela seria a sua última Copa. Ainda jogou como titular da Seleção até 1988, mas aí o maior nome do gol brasileiro desde Gylmar pedia passagem: Cláudio Taffarel. A pecha de desastrado na Copa do México nunca mais desgrudou de Carlos. O arqueiro, cuja carreira iniciou de forma vertiginosa na Ponte Preta, foi mais um dos inúmeros casos de julgamento sumário e definitivo do torcedor brasileiro sobre o dono da posição número um. O torcedor é um eterno desconfiado com seu goleiro.
O absurdo de ficar anos esperando a chance e depois tudo terminar numa trave. E foi assim que o Brasil acabou eliminado: os craques brasileiros erraram seus pênaltis e a trave jogou contra Carlos ao rebater a bola chutada, e que depois bateria nas costas dele, entrando no fundo das redes. Ao goleiro, cai bem ser o bode expiatório.
Dezembro de 2022