Em seu filme O medo do goleiro diante do pênalti, o cineasta Wim Wenders conta a história de um goleiro que simplesmente abandona uma partida de futebol e, junto, vai se desprendendo dos laços que o unem à vida. Pensei neste filme quando me deparei com o paradoxo de escrever sobre os goleiros na Copa do Mundo de 2014. Este talvez seja o texto mais duro para a crônica brasileira, porque o Torneio jogado no Brasil representou a pior derrota para nosso time na história das Copas. O 7 a 1 para a Alemanha na semifinal marcou aquela edição do Campeonato Mundial. Dois goleiros dividiram o protagonismo naquela tarde de tristeza no Mineirão, na cidade de Belo Horizonte. De um lado, o gigante Manuel Neuer confirmava ser, a partir de então, o melhor goleiro da atualidade, depois dos reinados de Michel Preud`homme, Oliver Kahn, José Chilavert, Peter Cech, Irka Casillas e Gianluigi Buffon. De outro, o goleiro brasileiro, Júlio César, atleta que passou pelo Flamengo e Inter de Milan, mas que depois da goleada sofrida da Alemanha, nunca mais jogou pelo Brasil. Com 7 a 1 no currículo, tipo, “não tem mais clima”. O melhor que Júlio César poderia ter feito naquela trágica tarde de julho era sair caminhando pelas ruas da cidade de Belo Horizonte, vagando sem rumo, personagem errante, exatamente como o protagonista do romance do escritor alemão Peter Handke, adaptado por Wenders para o cinema. Ele era um goleiro sem medo do gol. Principalmente depois daquele treino. Treino com o Flamengo, ops, Alemanha.
A Copa do Mundo do Brasil foi um espetáculo de corrupção, malversação de verba pública, choro e tragédia coletiva. O time comandado por Luís Felipe Scolari não se preparou adequadamente para a Copa. Além disso, apenas um jogador tinha algum cacife, mas isto foi insuficiente no jogo decisivo, a partida semifinal contra os alemães. Na reta, a Alemanha superou os dois principais times sul-americanos e venceu o Brasil na semifinal e a Argentina na final. Superioridade germânica nos gramados, preparação física forte, concentração e foco, pinta boa com o povo brasileiro depois da integração com comunidades afastadas do interior da Bahia, além, é claro, de um elenco estrelar – bom futebol, em outras palavras – tudo isso garantiu o quarto título mundial para os alemães. Para o Brasil, fica a dúvida se o vexame histórico da derrota de 7 a 1 foi, ou não foi, pior do que a final de 1950 perdida para o Uruguai, no jogo conhecido como o Maracanaço. Em 2014, voltamos àquilo que Nelson Rodrigues chamava de “complexo de vira-lata”.
O titular do gol brasileiro foi Júlio César. Considerado um dos dez melhores goleiros do mundo em atividade durante os anos 2010, Júlio Cesar teve uma trajetória brilhante como goleiro. Em nada ficou longe dos grandes goleiros daquelas décadas iniciais do século XXI, mas no Campeonato Mundial do Brasil ele protagonizou, junto com a escrete canarinho, a maior vergonha do futebol nacional. Barbosa foi um injustiçado em 1950, Manga protagonizou cenas bizarras na Copa da Inglaterra, Waldir Peres dançou no Sarriá e Carlos conheceu a tragédia pelas traves na eliminação pela França. Júlio César, porém, nem teve tempo de lavar a alma de seus colegas: aos trinta minutos do primeiro tempo da partida contra a Alemanha ele já tinha levado um balaio de gols. Aquilo mais parecia um treino – para os alemães.
Júlio César pagou a conta junto com o time brasileiro. Perdeu para o Flamengo. Ou melhor: Clube de Regatas Alemanha-Flamengo. No dia do jogo contra o Brasil, os jogadores alemães entraram em campo no Mineirão com uma camisa que fazia referência direta ao clube de maior torcida do Brasil. A jogada de marketing da Adidas, ao projetar uma camisa igual a do Flamengo, criou na torcida – e no goleiro brasileiro – uma confusão sentimental. No fim, todos choraram de maneira escandalosa, naquilo que nem o próprio Nelson Rodrigues poderia explicar. O placar histórico de 7 a 1 foi um resultado desses que vemos na várzea, no futebol amador e nos treinos. Isto. Júlio César deve ter se confundido – e todo o selecionado brasileiro – pensando que estavam em algum treino. Do Flamengo. Não, era a poderosa e pragmática Alemanha de Neuer, Kloos e Müller.
Muitos goleiros jogam em treino o que nunca jogam nos gramados – a posição tradicionalmente tem três reservas à disposição do técnico. No jogo oficial, muitos jogam como se fosse treino, e ficam o tempo todo buscando bolas no fundo da rede. Caso de Júlio César em 2014.
Dezembro de 2022