Em 1931, o goleiro Alteiro, atleta do Chacarita Júnior da Argentina, recusou-se a defender um pênalti e postou-se escorado em uma das traves. Sua recusa era a de defender um pênalti batido por outro colega de profissão. O tiro direto foi batido. Esse é considerado o primeiro gol de goleiro em solo argentino. Noventa anos depois, Alisson Becker, camisa 1 do Liverpool da Inglaterra e titular da Seleção Brasileira, fez um importante gol em jogo contra o West Bromwich, e garantiu a vitória dos Reds. O feito aconteceu numa cabeceada após cobrança de escanteio aos 49 minutos do segundo tempo e garantiu ao Liverpool o caminho para a Champions League. Alisson declarou na época: “Naquele momento, só consegui pensar no meu pai, que nos deixou este ano. Sei que ele está extremamente feliz e orgulhoso”. O goleiro titular da Seleção Brasileira havia perdido o pai em acidente num açude localizado no interior no município de Lavras do Sul, Rio Grande do Sul. Na final da Copa do Mundo do Qatar, o goleiro Emiliano Rodríguez, camisa 23 da Argentina, sagrou-se campeão. Na entrevista, chorou ao agradecer seus pais e lembrar a infância em povoado pobre da Argentina.
A Copa do Qatar terminou em partida digna de uma final de Copa do Mundo, mas deixará péssimas lembranças no campo das ideias. O Estado Islâmico do Qatar é um Estado de exceção e impõe controle e perseguição política aos cidadãos, com tratamento desigual às mulheres e repressão à comunidade LGBTQUIA+, entre outras barbaridades. Em compensação, no campo foi uma Copa de contestação, ainda que mínima. As manifestações de Manuel Neuer, líder nato da Alemanha, e a postura do capitão da Inglaterra, Harry Kane, em defesa dos direitos humanos, mostram que a Copa do Mundo não está dissociada da vida social e política. A final entre Argentina e França foi um jogo espetacular, com um placar de 3 para Messi e 3 para Mbappé. Decidida nos pênaltis, a partida final fez o goleiro Emiliano Martínez transformar-se num herói. Antes do pênalti defendido na decisão, ele fez uma defesa nos minutos finais da prorrogação.
Além de Alisson, o Brasil levou para a Copa os goleiros Emerson e Weverton. Não há muito o que comentar sobre os goleiros brasileiros, senão o estranho fato de o técnico colocá-los todos a jogar, algo que em nada alterou o futuro da Seleção Brasileira no torneio. Fomos eliminados levando um baixo número de gols, okay, mas nas penalidades máximas contra a Croácia a desgraça foram os erros dos cobradores. Decepção total após o time estar vencendo até os últimos quatro minutos da prorrogação. Pela segunda vez, Alisson, eleito o melhor goleiro do mundo em 2019, é eliminado nas quartas-de-final, e tudo isso sem ter a menor culpa no placar.
Alisson e Emiliano são os dois nomes escolhidos desta última crônica do projeto 22 Goleiros 22 Copas, e isso porque suas histórias pessoais são feitas de perdas e glórias. Para Alisson, a glória de fazer um gol pelo seu clube e homenagear seu pai, que, em vida, viu o filho ser o melhor do mundo. Para Emiliano, a glória de defender uma cobrança que garantiu a vitória de 4 a 2 nos pênaltis. O goleiro da Copa (Luva de Ouro) foi Emiliano Martinez, e provavelmente esta escolha passou pelas defesas na final, em especial, aquele chute ao final da prorrogação. Ao término do jogo, Martinez, o portero argentino, definiu muito bem em entrevista o futebol argentino e a Argentina: “O nosso destino é sofrer”. Emiliano nasceu num povoado pobre, saiu da Argentina aos 17 anos e foi jogar na Inglaterra, ficou longe de sua família a maior parte da vida. Tal qual Alisson, cuja infância foi simples e vivida nas quadras de cimento de um conjunto habitacional na cidade de Novo Hamburgo, Emiliano teve seu momento de glória ao defender um pênalti e garantir a vitória para los hermanos. Argentina tricampeã.
A Copa na Arábia reservou, para os goleiros, cenas espalhafatosas, lances bisonhos, defesas derradeiras e atuações espetaculares, fatos comuns em torneios rápidos e de alto nível como a Copa do Mundo. Se assistimos Manuel Neuer descer ao inferno pela segunda vez com a Alemanha eliminada, novamente, na primeira fase, também vimos o agitado goleiro do Marrocos consagrar-se. Bounou, contudo, protagonizou o bizarro ao ser substituído antes do começo de uma partida da primeira fase. Livakovic, da Croácia, segurou tudo contra o Brasil, foi nosso maior pesadelo naquela noite, mas contra a Argentina quase foi empurrado para dentro do gol com bola e tudo. Sommer, da Suíça, segurou várias nações no melhor estilo neutro e diplomático do Cantões da Suíça, mas ficou olhando a bola entrar em jogo contra o Brasil. Pelo menos ficou bem na foto, ao menos isso. Rochet, desculpe, mas isso não é nome para goleiro do Uruguai. Saudades de Muslera e seus uniformes brancos. Onana, de Camarões, foi dispensado da concentração após indisciplina. Seu substituto, contudo, nada segurou na partida seguinte. Unai Simón, o basco louco, quase entregou tudo numa saída de bola da seleção espanhola. O goleiro inglês Pickford defendeu tudo e viu seu capitão errar pênalti no jogo decisivo contra a França. Tivemos também Gonda, o goleiro-Godzila do Japão: os braços curtos foram fortes somente contra a Alemanha. No quesito moda, o México. Uchoa, em sua quarta Copa, vestiu uniforme tipo Homem-Aranha. Se fosse literatura, seria Cuba. O insaciável Homem Aranha, de Pedro Juan Gutierrez.
Um dos livros mais impressionantes que já li na vida, O medo do goleiro diante do pênalti, do escritor alemão Peter Handke, mostra um indivíduo vivendo no seu limite. No meio de uma partida, ele abandona a meta e sai errante pelas estradas da Alemanha. Todo goleiro vive na linha da vida, no retângulo da grande área, na geometria debaixo das traves e na profundeza das redes. De vez em quando alguém deixa uma porta aberta, e ele encontra a glória.
18 de dezembro de 2022
Agradeço a Giancarlo e Elisa Olívia pela revisão, pelas sugestões e pelo amor. Sem essas duas pessoas, este projeto não existiria.
Valeu, Leandro, pela última frase.