A Copa do Mundo de 1994 – A Elipse de Taffarel

Em seu livro Veneno remédio: o futebol e o Brasil, José Miguel Wisnik constrói, no capítulo intitulado “A elipse: o futebol brasileiro”, toda sua argumentação a partir da noção de drible, para explicar que o futebol é feito disto: belos momentos em que a bola corre sozinha: o marcador tonto diante de Garrincha na Suécia, o goleiro Mazurkiewicz de joelhos diante de Pelé em 70, as arrancadas de Romário em 94 ou a defesa alemã esperando o chute de um atacante (Rivaldo), mas quem conclui ao gol é outro (Ronaldo), na final contra a Alemanha. Em todos esses casos, temos a elipse no futebol, que é quando acontece o inesperado: o chute de Pelé do meio de campo em direção ao gol do guarda-metas Viktor, da Tchecoslováquia, no México – e a bola não entra. Zoff defendendo a última chance brasileira na Batalha do Sarriá – somos eliminados. A bicicleta de Marcelo Balboa que passa rapando a forquilha do gol colombiano na Copa de 94 – todos só olham. No futebol, muitas vezes a melhor jogada é aquela que não deu em nada. O drible de Pelé em Mazurkiewicz é considerada uma obra-prima, mas ele errou o gol. A crônica de hoje é uma das elipses do futebol: o chute de Roberto Baggio para fora na final da Copa do Mundo de 1994.

A primeira Copa do Mundo nos Estados Unidos aconteceu no ano de 1994. Do ponto de vista comercial, foi um grande negócio. Tão bom que a Fifa, após fazer uma verdadeira liquidação e conceder à Rússia e ao Qatar as Copas de 2018 e 2022, respectivamente, agora entrega novamente a Copa de 2026 para americanos, canadenses e mexicanos. O sucesso comercial do futebol nos Estados Unidos, após o torneio mundial, é algo assustador. Durante a Copa tivemos, nos gramados, jogos empolgantes, gols fantásticos, reviravolta enredos ganhos, personagens únicos e a primeira final com zero a zero do primeiro minuto de jogo até o fim da prorrogação. Nada de gol. Os goleiros quase não foram exigidos com a bola rolando: fizeram poucas defesas, e quando foi preciso, a trave ajudou, caso do chute de Mauro Silva que pegou o arqueiro italiano Pagliuca de susto, fazendo ele deixar a bola escapulir para tê-la de volta após a pelota bater na trave. Como cidadão educado que era, beijou a trave. Um cavalheiro.

O titular do gol brasileiro era incontestável naquela década. Depois de sua participação nos jogos da Seleção Brasileira antes e depois da Copa de 90, e após sua transferência para o futebol italiano, Taffarel assumiu a camisa 1 e jogou três Copas. Nada teve a ver com a eliminação pela Argentina quatro antos antes, tampouco foi culpado dos três gols sofridos na final da Copa seguinte. Como reserva, o Brasil levou Zetti (São Paulo) e Gilmar (Flamengo). Na partida final do campeonato de 1994, contudo, Taffarel fez tudo certinho nas poucas vezes em que exigido: fechou o gol, defendeu um pênalti e agradeceu aos céus o erro de Baggio, aquele chute abominável para cima que definiu o título para o Brasil. “O Brasil é tetra, é tetra”, gritava Galvão Bueno abraçado a Pelé nas arquibancadas do Estádio Rose Bowl, em Pasadena, subúrbio de Los Angeles.

Numa Copa cheia de partidas disputadas (Brasil x Holanda), Taffarel usou suas habilidades como defensor de penalidades e carregou o Brasil para a final contra a Itália. Claro, tínhamos um sistema defensivo que era encabeçado pelo volante Dunga, capitão que ergueu a taça. Sempre me pergunto por que motivo Taffarel não ajudou meu Internacional em 1989, quando tanto precisávamos de suas habilidades para defender os pênaltis da semifinal contra o Olímpia. Por este ou por aquele motivo, o destino reservou a ele o protagonismo no título mundial de 94, que foi o único até hoje definido em cobranças de penalidades máximas. E foi neste ano que a bola, sempre arisca ao goleiro, faria uma elipse após o chute de Roberto Baggio, voando para os céus. O craque da seleção italiana errou o pênalti mais importante de sua vida; ficou parado com as mãos na cintura após o erro. Taffarel agradeceria. Tudo isso pode ser conferido no filme oficial da Fifa sobre a Copa dos Estados Unidos, intitulado Todos os corações do mundo (1995) e dirigido pelo brasileiro Murilo Salles. A fita é considerada até hoje o melhor filme já produzido sobre uma Copa do Mundo. Foi nesta Copa, também, que assistimos as defesas do goleiro da Bélgica, Michel Preud`Homme, talvez um dos maiores goleiros de todos os tempos ao lado de Gylmar, Yashin, Banks, Meier, Fillol, Zoff, Zubizarreta, Buffon, Neuer e outros seres interplanetários que se instalaram debaixo das traves ao longo da história do futebol. O fundo do quintal do futebol – em outra bela definição de José Miguel Wisnik – reservou ao arqueiro belga o destino de sofrer o gol de placa do saudita Al-Owarian. O camisa 10 da Arábia Saudita arrancou do campo de defesa e driblou metade do time belga, anotando um dos gols mais bonitos de todas as Copas. Preud`Homme nada pode fazer.

Sim, o futebol é uma elipse feita de momentos mágicos de pura graça e sorte. O chute de Roberto Baggio no pênalti que deu o tetracampeonato ao Brasil é um desses raros momentos de puro veneno, absoluta negação, quem sabe até redefinição do próprio futebol. Um jogo sobre o nada.

 Dezembro de 2022

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